A série “Os Donos do Jogo” estreia na Netflix e mergulha de cabeça no universo clandestino do jogo do bicho. A produção acompanha as disputas de poder entre personagens ficcionais que comandam os jogos de azar no Rio de Janeiro, mas constrói seu submundo a partir de elementos reais que moldam essa contravenção. O diretor e criador Heitor Dhalia realizou uma extensa apuração, baseada em entrevistas, notícias e literatura, para garantir um alto grau de verossimilhança à trama. A série, que ele classifica como “máfia tropical”, busca traduzir um universo complexo com uma pesquisa muito fundamentada.
Um dos pilares da narrativa é a questão das famílias e da sucessão. O enredo segue o jovem Profeta, interpretado por André Lamoglia, que deixa o interior fluminense para expandir os negócios da família na capital, infiltrando-se em um mundo controlado por clãs como a família Guerra. Essa representação espelha a realidade, onde o familismo é uma característica marcante do jogo do bicho como grupo criminal. A herança do negócio é transmitida através das gerações, e a competição por hegemonia ocorre tanto entre as famílias quanto dentro delas. A série também retrata uma cúpula que reúne as principais lideranças, uma referência ficcional à “Liga Independente dos Bicheiros”, que se consolidou no Rio a partir das décadas de 1970 e 1980 com nomes como Castor de Andrade.
Embora a estrutura de poder seja inspirada na realidade, o diretor Heitor Dhalia afirma que todos os personagens são fruto da ficção, criados a partir da mistura de elementos de diferentes figuras reais. O público, no entanto, pode identificar semelhanças. A dinâmica da família Guerra, onde Búfalo assume o controle após casar-se com a herdeira, ecoa a história da família Andrade, onde o genro Fernando Iggnácio herdou parte do império de Castor de Andrade. A disputa entre as irmãs Mirna e Suzana pela herança do pai também encontra paralelos na vida real, como o conflito registrado entre as filhas gêmeas do bicheiro Maninho Garcia. A violência é outro elemento central que transita entre a ficção e a realidade. Investigações da Polícia Federal já apontaram que disputas entre clãs de bicheiros resultaram em dezenas de homicídios, reflexo de um ambiente predatório e brutal.
O universo retratado é predominantemente masculino, o que corresponde à regra no cenário criminal real, embora a série apresente personagens femininas, como Mirna Guerra e Leila Fernandez, desafiando essa estrutura em busca de poder. Para além do jogo ilegal, a trama explora as conexões dos bicheiros com a economia formal e setores culturalmente valorizados. O envolvimento de personagens com o Carnaval carioca, patrocinando escolas de samba, reflete uma relação histórica e profunda, onde bicheiros como Castor de Andrade atuaram como patronos, conquistando reputação e influência social. A relação com a política e a polícia é outro ponto de convergência. Bicheiros têm histórico de financiamento de campanhas e relações notórias com figuras proeminentes, além de casos de policiais envolvidos em esquemas de propina para garantir a operação do jogo ilegal. Por fim, “Os Donos do Jogo” aborda um desafio contemporâneo: a concorrência dos jogos online. A tentativa do personagem Profeta de lucrar com as apostas em “bets” reflete uma migração real de grupos de bicheiros para o ambiente digital, adaptando suas operações ilícitas aos novos tempos.










