“A Vizinha Perfeita”, documentário original da Netflix dirigido por Geeta Gandbhir, se ergue como um dos trabalhos mais essenciais e politicamente astutos do gênero true crime nos últimos anos. Vencedor do prêmio de direção no Festival de Sundance e já apontado como forte candidato ao Oscar, o filme escapa completamente das fórmulas sensacionalistas para oferecer uma investigação sóbria e devastadora sobre o assassinato de Ajike “AJ” Owens, uma mulher negra baleada por sua vizinha branca, Susan Lorincz, na Flórida em 2023. A grandeza do documentário reside não no que ele adiciona, mas no que ele subtrai: a narração em off, os depoimentos melodramáticos e a editorialização pesada são abandonados em favor de uma narrativa construída quase que exclusivamente a partir de material cru.
A diretora Geeta Gandbhir monta sua história com um impacto visceral, utilizando-se de imagens de câmeras corporais policiais, gravações de câmeras de segurança, chamadas para o serviço de emergência e vídeos caseiros. Essa escolha estética, que poderia resultar em um filme frio e distante, produz justamente o efeito contrário: uma imersão profunda e desconfortável nos eventos. Esta não é uma narrativa mediada por especialistas, mas uma apresentação direta e seca dos fatos, um após o outro. O resultado é um trabalho de curadoria brilhante que tensiona a relação entre verdade, poder e mediação, subvertendo o propósito original dessas imagens de vigilância, que historicamente criminalizaram comunidades negras, transformando-as em ferramentas potentes de memória e denúncia.
O conflito que levou ao desfecho trágico é marcado pela banalidade do racismo cotidiano. O documentário evidencia com clareza angustiante como as queixas reiteradas de Susan Lorincz contra as crianças negras da vizinhança – incluindo os filhos de AJ –, sua vigilância constante e hostilidade repetida, compunham uma coreografia do preconceito ordinário. As tensões não surgiram do nada; foram fruto de dinâmicas raciais profundamente enraizadas que estruturavam quem poderia, ou não, ocupar o espaço público com segurança. A obra demonstra que aquilo que poderia ser reduzido a um mero desentendimento entre vizinhas era, na verdade, a materialização de um conflito racial e de classe de longa data.
No centro desta trama sombria está a legislação da Flórida conhecida como “Stand Your Ground”. A lei, que autoriza o uso de força letal se alguém afirma se sentir ameaçado, é exposta em sua aplicação profundamente desigual, um mecanismo que beneficia desproporcionalmente réus brancos. O caso de AJ Owens escancara essa tensão: Susan Lorincz tentou se amparar nessa legislação para justificar o disparo fatal através da porta. A condenação posterior de Lorincz a 25 anos de prisão, um desfecho incomum que trouxe um senso de justiça, é mostrada não como um ponto final, mas como um marco dentro de um debate muito mais amplo. O filme deixa claro que a responsabilização individual é insuficiente diante de uma estrutura legal que continua a normalizar a violência em nome de uma “autodefesa” seletiva.
Algumas reações ao filme o acusam de falta de empatia com a perspectiva de Lorincz, mas essa leitura ignora a profundidade de sua abordagem. “A Vizinha Perfeita” não busca pintar as crianças como santas ou negar o direito à paz de qualquer morador. Seu feito mais notável é demonstrar, com crueza irrefutável, como uma resposta desproporcional pode ser devastadora para uma família e uma comunidade inteira. A decisão de não cortar a cena em que Lorincz, no interrogatório, chora sozinha, não é um ato de humilhação, mas uma expressão de tristeza profunda por uma tragédia que era completamente evitável.
Ao final, “A Vizinha Perfeita” deixa um incômodo necessário e duradouro. A condenação não apaga o luto da família Owens nem o trauma da comunidade, e a sociedade americana segue confrontada com leis que perpetuam a violência. Mais do que relatar um crime, este documentário atua como um espelho das fissuras estruturais da contemporaneidade, onde vigilância, medo e desigualdade racial se entrelaçam de maneira letal. Ao inverter o uso das imagens de controle, Gandbhir executa um gesto político potente, transformando instrumentos de opressão em arquivos de resistência. “A Vizinha Perfeita” é um filme incômodo não por buscar o choque fácil, mas por revelar com precisão cirúrgica que a violência racial não é um acidente, mas uma estrutura operante. É um documentário vital e indispensável.










